segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A justiça subversiva de Deus

“Chama os trabalhadores e paga-lhes uma diária a todos, começando pelos últimos até os primeiros” (Mt 20,8)


Outra parábola surpreendente de Jesus onde o protagonista é o dono da vinha, um homem bom e justo, que quer trabalho e pão para todos. Ao contá-la, certamente Jesus despertou nos ouvintes um desconcerto geral. Os trabalhadores são contratados em horários diferentes, ao longo do dia e, surpreendentemente, o dono da vinha paga a todos um denário, que era o que uma família precisava para viver cada dia na Galileia. Os que chegaram primeiro protestaram, considerando uma injustiça o fato de terem trabalhado mais e recebido o mesmo valor pela diária. 

Jesus revela uma concepção revolucionária de justiça do Pai. Deus desafia a justiça calculadora, autosuficiente. Nós achamos justiça pagar algo com seu preço equivalente. Mas Deus tem outros critérios: para Ele, justo é o que é bom. A justiça de Deus é idêntica à sua bondade. O dono da vinha pagou o salário que não era proporcional ao trabalho feito, mas sim proporcional às necessidades dos trabalhadores e de suas famílias. Ele não se fixa nos méritos de cada um, se trabalhou muitas horas ou se trabalhou poucas horas; o que lhe preocupa é que, esta noite, todos tenham o que comer.

A parábola também revela que o importante é a intensidade do trabalho e a intenção com que ele é realizado e não apenas sua duração; revela também que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e um privilégio. No Reino não se trabalha por méritos ou para receber recompensa. A retribuição já está dada no fato de “trabalhar na vinha do Senhor”. 

Outro aspecto que a parábola deixa transparecer é que, além da relação de trabalho, baseada no rendimento e regida pela justiça, existe a relação amorosa, baseada na generosidade e regida pela bondade e pela ternura. Precisamente aos “primeiros” que foram trabalhar na vinha, o dono teve de recordar uma coisa que é absolutamente lógica: “o teu olho é mau porque eu sou bom?” 

A última palavra é a chave de todo o texto. Deus Pai se relaciona com seus filhos não a partir do critério do mérito segundo o rendimento, mas a partir da generosidade. Ele não anda calculando o que cada um merece. Isso é uma falsa ideia que serviu somente para ‘deformar” a imagem de Deus que todos nós carregamos dentro. Muita gente fundamenta sua fé num Deus “deformado”, porque é um Deus que se parece muito mais a um patrão que ajusta contas com seus criados do que um Pai que quer sempre que seus filhos vivam. Deus é generoso, e basta. 

As pessoas que tem em sua cabeça o Deus-patrão, que paga segundo os méritos e o rendimento, não entendem e nem podem entender o Deus-Pai revelado por Jesus no Evangelho.

Há cristãos que passam pela vida como “diaristas”, calculando o que vão “ganhar” e “merecer”. E há cristãos que caminham pela vida como “filhos” do Pai do céu: eles não pensam em ganhos e em merecimentos; só pensam em ser bons filhos, honrados por trabalharem na vinha do Pai e que vibram quando alguém acolhe o chamado para colaborar. Para eles o que importa não são os “méritos”, mas a “generosidade”.

Em geral, aqueles que veem a si mesmos como os “primeiros” e, portanto, como os que apresentam maior rendimento, os mais eficazes e os melhores, o que fazem mais pelos outros, não podem tolerar que os “últimos” sejam tratados como eles, que veem a vida somente a partir da eficácia, dos direitos, dos privilégios e do bom rendimento. Não possuem outros critérios em sua cabeça e nem sequer em suas vidas há lugar para outras categorias ou outros valores. 

Ora, as pessoas que assimilaram tais critérios são pessoas que não entendem as “razões do coração” e, portanto, tais pessoas correm o perigo de não entender a generosidade e, o que é pior, normalmente não estão capacitadas para compreender que a vida tem de se reger por uma bondade tão grande que supere todas as obrigações do direito e da justiça humana. 

Ao dizer isso, estamos tocando na utopia do Reino anunciado por Jesus. Por isso, a ética de Jesus nos desconcerta, nos confunde. Pois não temos a coragem de afirmar que na vida inteira, tanto na vida privada quanto na vida social e pública, se não é a bondade e o amor que prevalecem, fazemos desta vida uma selva, um campo de batalha, um inferno, no qual caem os mais fracos e tiram proveito os que dominam os outros.

Sabemos muito bem que todo aquele que pretende situar-se na frente ou acima dos outros provoca divisão, inveja, ressentimentos e, definitivamente, rompe a proximidade entre as pessoas.

Ao contrário, aquele que não pretende postos de honra e de importância, somente pelo fato de agir assim, produz uma corrente de harmonia, de união, de humanidade, de proximidade entre as pessoas.

Na parábola de hoje há um “pecado de raiz” que afeta a todos: a comparação com outros. E da comparação brotam a inveja e a queixa. E quanto mais se compara com outros, mais insatisfeito fica e mais se sente prejudicado por Deus e pelo destino. Com isso, trava o fluir da própria vida.

Na parábola, o que deveria ser um motivo de alegria para os primeiros que foram chamados, é sentido como ameaça à própria segurança. Quando ouvimos as palavras dos “primeiros” – justificando-se e pedindo reconhecimento - percebemos uma queixa mais profunda. É a que vem do coração que acha que nunca receberam o que lhe era devido. Na sua queixa, o trabalho é visto como escravidão. 

É a queixa expressa de inúmeras maneiras, sutis ou não, formando uma montanha de ressentimento. Fechados em si mesmos, só olham para si, para suas obras, para a duração do seu trabalho; encouraçados na própria justiça, não há neles a mais mínima abertura para a gratuidade e a alegria da comunhão, para a vivência da filiação e da fraternidade. 

Queixar-se é contraproducente e nocivo. Alguém que só reclama é alguém difícil de conviver.

O trágico é que, uma vez expressa, a lamúria leva ao que mais se queria evitar: um afastamento maior. Essa queixa íntima é sombria e pesada: condenação dos outros, condenação própria, justificativas... entrando numa espiral de auto-rejeição. À medida que se deixa arrastar ao interior do vasto labirinto das suas queixas, fica mais e mais perdido, até que, no fim, acaba achando-se a pessoa mais incompreendida, rejeitada, negligenciada e desprezada do mundo. 

É esta derrota – caracterizada por julgamento e condenação, raiva e ressentimento, amargura e ciúme – que é tão perniciosa e prejudicial ao coração humano. Tornou-se menos livre, menos espontâneo e um tanto quanto “pesado”.

Texto bíblico: Mt 20,1-16 

Na oração: - é na “queixa”, declarada ou não, que reconheço em mim a imagem dos “trabalhadores da primeira hora”. Quais são minhas queixas?

- não é fácil distinguir o meu ressentimento e administrá-lo de maneira sensata; esta é a realidade: onde quer que se encontre meu lado virtuoso, aí também existirá sempre um lado queixoso e ressentido;

- abrir espaço em meu interior para que a bondade e a gratuidade do Pai prevaleçam na minha relação com os outros.

Pe. Adroaldo Palaoro sj  (Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI)

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